2. Response to Derek Neale (in Portuguese)

Renan Salmistraro

Farei minha apresentação tentando conciliar a imagem da área da escrita criativa oferecida pelo Derek, além dos comentários trazidos pela Paloma, com a teoria crítica, que é o campo de estudo no qual eu tenho atuado no doutorado, sob orientação do professor Fábio Durão.

Num primeiro momento parece haver uma antipatia absoluta entre a abordagem crítica da literatura e a produção de uma nova escrita. Nada parece mais avesso aos pressupostos práticos da escrita criativa do que a hipótese de Adorno de que é impossível fazer poesia após Auschwitz. Se nos basearmos apenas na oposição entre esses campos de estudo, os escritores criativos só podem ignorar Adorno e os entusiastas de Adorno, por sua vez, só podem ignorar os novos escritores. Ou seja, a total oposição não permite que exista um campo de discussão. Por isso, aqui quero mais propor uma possível contribuição entre a escrita criativa e a teoria crítica, do que toma-las como áreas inconciliáveis.

Como disse, partirei das impressões sobre a escrita criativa deixadas pela apresentação do Derek. Em sua apresentação, vimos que a base dos cursos da escrita criativa é a prática, a criação de uma nova literatura, mais do que a investigação de uma literatura já existente. Nessa perspectiva, ela não contribui necessariamente com a literatura que existe, mas instrumentaliza esta literatura em nome de seu devir. Mesmo que a análise teórica de um corpus literário faça parte desses cursos, tal análise visa somente a produção de um novo conteúdo. Ou seja, não constitui um exercício em si mesmo.

Esta preocupação com o devir, em certa medida, pode significar um convite ao experimentalismo, mas se a própria mecânica do experimentalismo acabar transformado numa forma de reprodução técnica, ela pode anular todos os efeitos positivos do experimentalismo. Isto é, ele se torna refém de uma categoria de mercado: o novo, a inovação; ou pior, o novo e a inovação como um mero pressuposto intrínseco da imitação barata. Sem o respaldo da crítica e da teoria literária, como instrumento de análise da técnica como forma, não como mero exercício de linguagem, não há uma análise de causa, ou melhor, não é possível questionar nem se o experimentalismo ainda serve ao momento atual ou mesmo se a própria literatura tem lugar no capitalismo pós-industrial. O experimentalismo ou a escrita transformada em técnica pode se curvar ao mecanismo de reprodução de mercadoria, sem a resistência e o alcance crítico que encontramos na literatura moderna.

O que estou tentando dizer é bem óbvio: podemos destrinchar a técnica de determinado autor, mas não podemos simplesmente transportar esta técnica ao nosso tempo. Borges nos fala sobre isso em seu “Pierre Menard, autor de Quixote”. Quando Derek nos fala da associação da escrita criativa com os departamentos de ensino da língua, não consigo imaginar um curso para formação de escritores autênticos, mas um curso que dissemina na literatura moderna autores como Pierre Menard, um excelente depurador e imitador de técnicas literárias. Técnicas que hoje, em nossos dias, já estão mortas.

Consequentemente, quero propor que não pensemos a literatura apenas como técnica. Nesse ponto, a teoria crítica me parece ser fundamental, pois possibilita pensar a forma literária como parte do processo social. E o próprio autor não é um indivíduo autônomo que escreve a seu bel prazer, a sua relação com a escrita, aquilo que ele espera obter e divulgar com o ato de escrever e a própria coisa que ele escreve, tudo pode ser pensado tendo em vista a ordem social. Em resumo, a teoria crítica nos permite responder por que não é mais possível hoje em dia escrever como Cervantes.

Do meio para o fim de seu texto, já sob a ótica do empreendedorismo, Derek discute largamente as dificuldades de se viver da escrita. A partir disso aponta no sentido da preparação dos alunos ao mercado de trabalho e à sua inserção em campos mais lucrativos. Aqui falamos de uma visão de literatura que novamente está mais interessada em sua reprodução mecânica do que em sua subsistência real no mundo. Ela ainda testemunha o absoluto esgotamento da visão da obra literária como resistência. Até pouco tempo atrás – me refiro ao movimento das vanguardas do início do século XX com sua resistência ao consumismo burguês – jovens escritores aspiravam a ser grandes escritores. O prestígio ou as condições materiais da vida seriam consequência da relevância da obra. E muitas vezes, ainda sob a mácula do gênio incompreendido romântico, havia até um certo conformismo ou mesmo uma aspiração à pobreza. Até mesmo a incompreensão ou a não aceitação da obra podia ser sinal da sua grandeza. Não faz tanto tempo que Stendhal disse que não escrevia para seus contemporâneos, mas para uma geração que viria dali a 200 anos. Faz menos tempo ainda que Beckett vibrou quando ficou sabendo da estreia desastrosa de Esperando Godot em Londres.

Não quer dizer nada a respeito da qualidade da obra se ela é ou não bem acolhida, se ela gera ou não lucro àquele que a criou. Mas a resistência ao empreendedorismo ou ao gosto que norteia o mercado aparentemente possui um aspecto crítico maior do que sua aceitação submissa. Por outro lado, Balzac se tornou o grande expoente de uma literatura crítica para uma ala da crítica marxista, escrevendo obras sob encomenda, muitas vezes escritas apenas para cobrir suas dívidas. Mas mesmo Balzac possuía uma noção de obra (isto é, um conteúdo simbólico que impede que o objeto literário atenda passivamente às relações de troca). E ainda assim, nesse período a indústria editorial ainda estava em formação.

Com tudo isso quero colocar a seguinte questão: é possível que as demandas atuais do mercado possibilitem o surgimento de boa literatura ou a literatura já se tornou um mero objeto de troca, em que um autor junta palavras com certa destreza e troca esse produto de seu trabalho por dinheiro. Assim a literatura sobreviveria nos tempos atuais apenas como uma sombra ou pior, como um organismo parasita, daquilo que ela foi em outros tempos, quando participava efetivamente da formação cultural do indivíduo. Aparentemente não há no conceito de literatura que a escrita criativa nos oferece espaço para a resistência à sua própria condição atual.

 Por outro lado, no capitalismo avançado, a resistência parece ter conduzido o escritor não só à marginalização, como a uma semimudez, na qual sua voz não encontra mais respaldo na sociedade. Não consigo imaginar uma imagem melhor para este desvanecimento do escritor do que aquela dos narradores vagabundos de Beckett, em seus romances do pós-guerra. Termino aqui com um trecho desta imagem, do início do romance Molloy:

Deixo para vocês pensarem o que este homem que vem com marcações, exigindo mudanças no texto sugere. E a consequência do “se não faço nada”, isto é, se não corrijo, “não me dá nada”. Será que o escritor hoje em dia ainda está em condições de escolher um lugar na sociedade ou ele está condenado a pertencer a dois polos opostos: a celebridade e o marginal.