4a. Response to Nicola Watson (in Portuguese)

Elisa Pagan

É importante ressaltar o interesse de uma fala como a da professora Nicola no contexto brasileiro; aqui, assim como foi descrito pela professora, também há uma pressão, que muitas vezes tem origem nos próprios alunos, para que os estudos literários ou mesmo as humanidades em geral gerem impactos fora da academia. Também é evidente para nós a maneira como tem surgido nos alunos de Estudos Literários recentemente uma preocupação cada vez maior com emprego, sem muita expectativa de melhora das perspectivas.

Gostaria de comentar brevemente alguns momentos da fala da Nicola e por fim colocar algumas questões.

A primeira questão que me parece interessante, lembrando da história que foi contada ao final de sua fala (sobre o público perdendo a vondade de conhecer um lugar literário, considerando-o falso), seria tentar entender de onde viria esse súbito desinteresse por parte do público. Qual seria a razão para esse descontentamento? Talvez possamos dizer que desejava-se encontrar, nesses lugares, a presença da “aura” do autor, algo como pegadas ou rastros reais, e, ao invés disso, encontram uma narrativa arquitetada para simular rastros que não são os rastros “verdadeiros”, “autênticos”, em um sentido quase romântico. Seriam estes “verdadeiros rastros” uma promessa de facilitação ao acesso com uma alta cultura, que, ao aparecer simplificada, perde seu sentido? O que, afinal, esperava-se encontrar ali, e por que não encontraram?

Outra questão que poderíamos colocar é: qual é o lugar da reflexão sobre a literatura nestes empreendimentos? Como se relacionariam com eles, por exemplo, as discussões acerca da autoria das obras de Shakespeare, que muitos atribuem a Bacon, a Marlowe, entre outros? Talvez possamos dizer que um dos riscos de se construir um local literário é o de, tratando o autor como uma celebridade, se afastar da própria literatura. Esse afastamento, que assegura o lugar intocável do autor no hall da alta cultura, talvez seja indispensável para os empreendimentos que vimos hoje, o que coloca um problema no mínimo irônico: o que atrai o público, a principal propaganda, é o suposto contato com algo tão poderoso e elevado; ao mesmo tempo, é esse mesmo endeusamento que produz a sua distância, que faz com que o contato com essas obras pareça tão fora do horizonte do público, algo como que reservado aos iniciados. Em outras palavras, a forma como se promete a possibilidade de se tocar aquilo que é intocável é o que gera, ou ao menos acentua, a sua intocabilidade. Parece que a função do acadêmico nestes empreendimentos seria a de dar autoridade, um teor de verdade, com sua bagagem intelectual, ao caráter de alta cultura destes lugares; ainda que, muitas vezes (ou necessariamente), essa mesma bagagem seja, em si, dispensável para a composição e arquitetura do local. Resumindo, mais uma vez: aonde o turista literário está tentando entrar?

Podemos dizer também que o quadro colocado não é animador; por um lado, o caráter qualitativo da bagagem literária dos professores, o conhecimento sobre literatura, parece não ter lugar nesses empreendimentos, e talvez em nenhum empreendimento que vise a inserção no mercado de trabalho. No curso de Introdução à Sociologia (1968), podemos ler Adorno falar sem delongas para os calouros que, provavelmente, quanto mais crítico e sofisticado for o pensamento do sociólogo, menos penetração ele terá no mercado. No nosso caso, não parece ser diferente. Somado a isso, como a Nicola mencionou, a maior parte deste trabalho pode ser considerado como não-remunerado, de forma que, em geral, o pesquisador nem mesmo lucra com a empreitada da qual participou.

Entramos assim em um segundo ponto relevante para essa discussão – o tema deste seminário – que é o da “agenda de impacto” para a pesquisa. Existe uma pressão para que o conhecimento gerado pela universidade não fique restrito a ela, que renda frutos fora dela, que tenha penetração na sociedade. Por partecurso  das instituições de fomento – algo muito incipiente no Brasil no que se refere a área de humanidades – isso significa que a pesquisa deve gerar resultados palpáveis e imediatamente rentáveis. E, como vimos, “a ‘agenda do impacto’ é congruente com a agenda de ‘empregabilidade’, que procura tornar o ensino universitário mais parecido com um programa de formação para a futura força de trabalho”. Podemos nos perguntar se essa agenda não diz respeito majoritariamente, ou mesmo se não está restrita, a um impacto de caráter econômico.

Seria interessante resgatar aqui um pouco do sistema de ensino brasileiro, numa breve divagação. No Brasil, os colégios, quando públicos – com excessão dos colégios técnicos –, oferecem um ensino muito precário que raramente gera uma base para que o aluno passe no vestibular e consiga entrar numa faculdade, e por isso fica dependente de cursinhos populares e públicos se deseja obter um título de curso superior. Por outro lado, as escolas particulares, em sua grande maioria, são totalmente voltadas para o vestibular. Existem muitas escolas que, no último ano do colégio, não oferecem educação física e colocam notas fictícias no boletim para que sobre mais tempo para outras disciplinas; exclue-se da grade sociologia e filosofia, já que o conteúdo pedido nas provas era inexpressivo; as notas dos alunos provém, muitas vezes (as vezes todas as formas de avaliação do aluno), de simulados. Aqueles que entram na universidade, portanto, tiveram um ensino não focado na formação de seus alunos, mas no treinamento, no ensino de técnicas para se passar no vestibular, o que deixa sua formação deficitária. Parece-me que algo semelhante pode acontecer com as universidades, levando em conta a realidade do ensino e da pesquisa no Reino Unido, tal como a Nicola apontou: ao invés de focarem-se na formação dos alunos – no nosso caso, na reflexão crítica sobre literatura – a universidade foca-se na formação de mão-de-obra. Desta forma, assim como no ensino básico brasileiro privado a educação acaba por ter, como finalidade última, o ingresso do aluno na universidade, ainda que isso implique em limitar sua formação ou transformá-la em conteúdos decoráveis e fórmulas prontas, em um curso de estratégias para se fazer uma prova, também o ensino superior passa a ter como finalidade algo que é externo a formação intelectual de seus alunos, que é a formação de mão-de-obra para ser empregada fora da academia. As formas de conhecimento que não são instrumentalizáveis, nesse sentido, passam a ter cada vez menos lugar nos espaços educacionais. Numa visão ampla, teríamos no nosso horizonte todo um sistema de ensino, do básico até o superior, voltado, principalmente, para a formação de mão-de-obra.

Isso coloca uma reflexão interessante para esse seminário, pois poderíamos inverter sua questão central: ao invés de pensarmos qual é o impacto da academia fora dela, podemos pensar qual é o impacto da sociedade sobre a academia. A pressão para que os frutos da universidade sejam imediatamente rentáveis certamente faz com que existam mudanças estruturais nos cursos, na forma e no conteúdo da pesquisa. Se, como a Nicola disse, é difícil vender a bagagem tradicional sobre literatura, os frutos de uma reflexão cuidadosa, não parece absurdo dizer que talvez ela deixe de ter, em algum momento, sentido dentro de uma universidade cuja função é a formação de mão-de-obra. Se levarmos esse quadro ao extremo, ele pode apontar para duas possibilidades: ou a pesquisa em estudos literários abre mão do que não é economicamente útil, ainda que isso sacrifique saberes profundos, ou ela se torna algo obsoleto e deixa de existir. Há, até mesmo, se me permitem um parêntesis, uma questão moral aqui: a pesquisa recebe financiamento público para existir, e o fato de que um determinado resultado seja estritamente crítico ou teórico, sem inserção na esfera do consumo, sem ser visível para o público em geral, pode parecer um grande desperdício de dinheiro, pode parecer até mesmo algo injusto, que incita a indignação. Poderíamos então, desta forma, dizer que é o próprio impacto do mercado sobre a academia que faz com que, no fim, o conhecimento tradicional sobre literatura, teórico e crítico, não tenha impacto fora da academia. O “impacto” que um conhecimento intelectual não-instrumentalizável pode ter na sociedade some, aos poucos, do horizonte do representável.

Por fim, talvez fosse interessante pensar nessa discussão à luz da ideia de bem comum. Há várias formas de se justificar a preocupação pública com educação. Há quem diga que são gastos, que deveria-se privatizar o ensino; ou que é um investimento que gera retorno financeiro a longo prazo. Mas, considerada como bem comum, poderíamos dizer que ela passa a ser algo que se justifica a si mesma? Um direito, que não precisaria estar subordinado a lógica de meios e fins do mercado, não precisaria necessariamente gerar empregos, nem mesmo ter uma utilidade palpável e visível a curto prazo? Um livro difícil e obscuro, que ninguém sabe se um dia será lido, mas que permanece disponível em uma biblioteca pública, pode ser considerado parte do bem comum?