1b. A ESCRITA CRIATIVA NO REINO UNIDO (in Portuguese)

Derek Neale
Tradução de Renan Salmistraro

 

Darei uma ampla introdução à Escrita Criativa, porque desconfio que como área de estudo não seja familiar a todos - alguns suspeitam que não seja mais do que parte dos cursos de Inglês. Deixarei, em grande parte, implícito suas conexões óbvias com os objetivos deste projeto - Empreendedorismo e o bem comum - porque tenho uma longa exposição para cobrir. Mas vou ao menos esboçar alguns pontos desta relação.

 

 O QUE É A ESCRITA CRIATIVA?

Escrita Criativa é um termo relativamente jovem, surgido pela primeira vez em meados do século XIX, e que veio a descrever a escrita, tipicamente ficção ou poesia, mas também roteiro, que exibe imaginação ou invenção, muitas vezes em contraste com a escrita acadêmica ou jornalística.

Ele tem sido usado desta maneira mais proeminentemente desde a década de 1920, quando passou a ser empregado para designar uma vertente específica do estudo universitário e pré-universitário. No Reino Unido, a ascensão da Escrita Criativa tem representado um dos maiores desenvolvimentos no estudo da literatura e da linguagem nas últimas décadas. Isso oferece uma abordagem baseada na prática, um fator que é sua característica autodefinidora e distintiva. Ela é frequentemente associada aos departamentos de Estudos de Inglês, embora não exclusivamente. Em comparação com muitos cursos de Literatura inglesa e Estudo de línguas - que se dedicam principalmente à análise retrospectiva e à consideração teórica de artefatos literários históricos ou contemporâneos ou ao uso da linguagem - a disciplina acadêmica de Escrita Criativa se preocupa em primeiro lugar com a participação no ato de escrever.

Tal estudo é avaliado através dos resultados das produções literárias dos alunos, mas muitas vezes também envolve comentários reflexivos sobre o processo de escrita. Tais comentários são componentes subsidiários da produção principal, a qual é escrita em um ou mais gêneros: ficção, poesia, não ficção criativa (memórias, biografia, viagens e escrita da natureza, por exemplo), bem como roteiros para uma variedade de mídia - cinema, rádio, teatro e novos meios de comunicação. Em muitos aspectos, a prática da escrita criativa é semelhante às disciplinas de arte, design, dança ou performance, mais do que a qualquer curso de língua inglesa ou estudo da literatura em que a experiência do processo criativo é o foco central. No entanto, os instrumentos dos estudos ingleses - linguagem e artefatos literários - também são ferramentas primordiais no estudo ativo da escrita criativa.

 

QUEM SÃO OS ESCRITORES CRIATIVOS?

Esta lista oferece apenas uma amostra rápida - escritores que têm ensinado e/ou estudado escrita criativa. Alguns deles você pode ter ouvido falar outros não:

Você vai notar que há um brasileiro ali. Talvez eu fale mais sobre isso no final - quando você poderá me questionar sobre todos esses escritores se desejar.

Esses escritores fizeram, e muitos continuam a fazer, dinheiro com a escrita - mas muitos deles também ganharam dinheiro com o ensino. A escrita criativa é ensinada tradicionalmente por praticantes. Os mercados de artefatos literários e de educação literária parecem, muitas vezes, codependentes, além de também implicar o leque mais amplo de indústrias criativas. O nível e o modo das atividades lucrativas dos escritores às vezes podem ser surpreendentes. Por exemplo, Malcolm Bradbury, que com Angus Wilson criou o primeiro e mais prestigioso programa de Escrita Criativa do Reino Unido na UEA (Universidade de East Anglia), escreveu romances e uma quantidade considerável de críticas literárias e, enquanto mantinha uma posição acadêmica, também escreveu o roteiro de muitos episódios da popular série de crimes da TV britânica Frost - bem como de vários outros dramas para a TV. Alguns dos escritores acima - especialmente Fey Weldon e Joseph Heller - tiveram carreiras lucrativas escrevendo anúncios. Muitos, provavelmente a maioria, dos acima citados trabalharam com jornalismo (e não somente fazendo resenhas).

O Programa de Escrita em Iowa, o mais antigo e prestigioso programa de Escrita Criativa dos EUA, está associado a dezenas de autores vencedores do Prêmio Pulitzer - entre ex-alunos e tutores. UEA - ou a Universidade de East Anglia, para dar o nome completo - pode listar muitos professores e alunos formados entre os vencedores do Prêmio Costa Book - alguns mencionados acima.

Mas tem que ser dito que a escrita criativa não é apenas sobre celebridades, os nomes de sucesso. Está é uma das áreas mais populares e engloba muitos, muitos níveis de objetivo, abordagem, habilidade e realização.

 

POR QUE A ESCRITA CRIATIVA?

Por que a Escrita Criativa atrai estudantes de ensino superior - e até mesmo estudantes não universitários? Na Open University, temos um MOOC (curso aberto de massa on-line), chamado Começar a escrever ficção, que atraiu 200.0000 aspirantes a escritores nos últimos dois anos. Esta popularidade é comum.

Os estudantes de Escrita Criativa têm muitos motivos para começar a escrever. Alguns serão atraídos pelo desenvolvimento de habilidades de escrita e de leitura, pela promessa de ser capaz de criar e desenvolver novas ideias. Alguns desejarão ser escritores profissionais, embora, como a romancista Rachel Cusk diz, isso possa ser mais do que suspeito:

Cusk também diz:

Escrever a partir deste ponto não é solipsista, autobiográfico ou terapêutico. Os alunos podem escrever ficção de gênero, não necessariamente sobre si mesmos. Trata-se, no entanto, de uma escolha pessoal - não necessariamente de “empreendimento” no sentido comercial ou tomando o lucro como seu principal objetivo. O escritor ocasional pode lucrar com a atividade, sim - e contabilistas da universidade tendem a ver prontamente os prováveis lucros provenientes de um assunto tão popular.

 

INGLÊS E ESCRITA CRIATIVA - COMO ELES SE ENCAIXAM?

Dentro do estudo de Escrita Criativa, todos os aspectos do processo criativo estão relacionados com a “prática”. Além de habilidade, forma e técnica, outros aspectos incluem a geração e o desenvolvimento de ideias, a capacidade de ler como um escritor e elementos pragmáticos, como usar um notebook e executar vários níveis de edição - como de frase, linha, parágrafo, cena, estrofe, história e capítulo. Ler como escritor significa realizar uma leitura minuciosa. É nesse ponto que a Escrita Criativa coincide com os Estudos em Inglês, que se concentram no modo como a escrita é construída e na relação entre forma e conteúdo. Isso envolve a leitura atenta de obras estabelecidas e também de trabalhos em andamento, que muitas vezes inclui o trabalho de colegas em oficinas de escrita ou suas equivalentes on-line. Como diz Cusk:

O crescimento dos cursos de Escrita Criativa nas universidades do Reino Unido a partir de 1970 (nos Estados Unidos, onde o assunto se originou, desde 1930) - e o acompanhamento do aumento da quantidade de escritores que facilitam esse estudo - pode ser visto como irônico, devido à sua contemporaneidade com certas proposições da crítica literária, que sugeria que o autor já não era necessário para a interpretação de textos (ver ensaios como “A morte do autor” de Roland Barthes e “O que é um autor?” de Michel Foucault).

Malcolm Bradbury comentou sobre sua dupla identidade como literato acadêmico e escritor:

Mas há um ajuste improvável entre teoria e prática. Nem os críticos literários nem os professores de Escrita Criativa toleram muito o que poderia ser chamado de “culto do autor”, segundo o qual o escritor é visto como um gênio ou progenitor misterioso de textos, sendo que seu talento insondável e sua insigne biografia conferem-lhe uma legitimidade quase divina. Na era do workshop, a escrita passou a ser vista como uma questão de esforço, atenção editorial rotineira e assídua, com mais ênfase na criatividade como processo, na consideração técnica e prática do regime de redação e na hesitação, muitas vezes incrivelmente desajustada dos primeiros rascunhos.

No mundo comercial da publicação há um fascínio resiliente com os autores, especialmente quando se trata dos mais vendidos e dos escritores canônicos. Entretanto, na Escrita Criativa há um foco na fenomenologia da prática da escrita, com ênfase “na criatividade como um processo dinâmico, bem como na criatividade como um produto concluído” (CARTER, p 340) - simultaneamente nos estudos literários há um interesse crítico e arquivístico constantemente renovado sobre o papel dos editores na produção literária. Com esse novo foco, houve uma mudança comum, se não exclusiva, da terminologia, que passa a empregar o termo “escritor” cada vez mais diferenciado da noção de “autor” (e suas conotações de autoridade).

Deve-se notar também como a Escrita Criativa influenciou a crítica inglesa. As abordagens “intervencionistas” da análise linguística e literária ganharam maior credibilidade, com o surgimento de formas transformadoras de análise através das quais o leitor intervém tanto quanto o escritor no texto original. Como Carter explica, “a (re)escrita envolve o uso de uma gama diferente de escolhas linguísticas” e, à medida em que são experimentadas, também se pensa em suas propriedades e implicações. A reescrita pode consistir em reestruturar uma cena ou capítulo, por exemplo, pela voz de um personagem periférico, escrevendo em uma pessoa gramatical diferente, ou mudando o cenário geográfico e histórico. Existem inúmeras intervenções possíveis e, como sugere Carter, esta abordagem tem uma relação com a escrita criativa e com a análise crítica; trata-se de um modo mais ativo de ler e participar de um texto “ao longo de uma leitura-escrita-crítico-criativa contínua” (p.342).

 

A ESCRITA CRIATIVA ESTÁ CRESCENDO?

Nos EUA, a princípio o assunto foi visto predominantemente como estudo de MFA (Master of Fine Arts). No Reino Unido, foi inicialmente encarado como um assunto de nível MA (Master of Arts), após o lançamento do programa de mestrado na Universidade de East Anglia com seu primeiro (contestado) estudante - Ian McEwan -, e o lançamento de programas semelhantes, como na Universidade de Lancaster ao mesmo tempo. A quantidade de oferecimento de cursos na área da Escrita Criativa tem acelerado em uma taxa rápida desde então em todos os níveis.

Este crescimento continua a acelerar - e já não se limita aos cursos de mestrado. Este não é apenas um fenômeno do Reino Unido. Segue-se um aumento comparável nos EUA e outros países:

 

O QUE É A PESQUISA EM ESCRITA CRIATIVA?

O modo mais comum de pesquisa na área de Escrita Criativa é a prática criativa - muitas vezes referida como “pesquisa baseada na prática”. O pesquisador explora, articula e investiga através de sua prática - a escrita de poemas, contos, romances, não ficção criativa, peças e filmes. As realizações criativas e os resultados em si envolvem pesquisa, assim como suas considerações formais. A prática é central, “a compreensão crítica ou teórica está contida e/ou estimulada pela prática” (NAWE p.11). Alguns resultados da pesquisa baseada na prática podem incluir trabalhos críticos e os elementos críticos podem ser relacionados, ou não, à prática que os orienta.

O estudante de doutorado em Escrita Criativa normalmente escreve um trabalho em conjunto com um comentário crítico, o qual se concentra em aspectos da análise contextual e da investigação. O primeiro doutorando em Escrita Criativa do Reino Unido estava na UEA (Universidade East Anglia) em 1990 - Fadia Faqir, um escritor jordaniano cujo primeiro romance - Nisanit - foi escrito como dissertação de mestrado em Lancaster. Desde então, os programas de doutorado têm se tornado cada vez mais comuns no Reino Unido e na Austrália, mas não nos Estados Unidos, onde o MFA (Master of Fine Art) continua a ser a qualificação de nível superior predominante na área.

Como você viu na lista de Escritores Criativos, o cânone passou a ser influenciado e afetado pela Escrita Criativa. Estilo e forma também foram afetados. Por exemplo, o conto - muitas vezes o modus operandi no estudo de escrita criativa; sua oficina tornou-se o estúdio estilístico do gênero. Ian McEwan produziu um livro de histórias curtas em seu ano de mestrado - First Love, Last Rites.

E tem ocorrido experimentação. A história em segunda pessoa, por exemplo, está se proliferando na era das oficinas. Isso pode ser atribuído às oficinais nas quais a narração em segunda pessoa é frequentemente usada em exercícios, demonstrando diferentes abordagens ao ponto de vista, ao mesmo tempo em que ilumina gradações linguísticas cotidianas e combinações de maior intimidade e distanciamento.

A coletânea de contos de Lorrie Moore Self-Help (1985) talvez seja o apogeu da narrativa em segunda pessoa. Ao apresentar tudo na segunda pessoa, suas histórias parodiam os manuais de instruções. A coletânea foi escrita para a dissertação de mestrado de Moore, de modo que suas histórias emanam das discussões da oficina sobre poética. No entanto, em um nível comercial, os mais vendidos são novamente enganosos. A coleção de contos é comumente apontada como um produto detestado, ignorado e nunca levado adiante pelos editores. Moore e McEwan são as exceções. Histórias curtas pode ser uma saída natural da oficina, mas as coleções não vendem e há cada vez menos locais para a publicação de contos isolados.

Este é outro exemplo de como as soluções da Escrita Criativa são muitas vezes incompatíveis com possíveis interesses comerciais ou mesmo literários. Histórias não são potencialmente viáveis para um plano de negócios, digamos, ou uma oportunidade de carreira. Poesia, em geral, ofereceria um exemplo semelhante. É quase impossível ganhar a vida exclusivamente com a publicação de poesia.

 

ESCRITA CRIATIVA - GANHOS E EMPREENDEDORISMO

A incompatibilidade entre algumas das produções literárias da Escrita Criativa e o mercado comercial é impressionante. Por exemplo, a editora Barbican foi criada para publicar alguns romances produzidos como tese de doutorado em Escrita Criativa que podem ter sido rejeitados pelas editoras, no entanto possuem algum valor no âmbito da crítica literária.

Mas há muitas obras publicadas comercialmente que surgem de mestres e doutores em Escrita Criativa. Eu, por exemplo, tenho dois alunos escrevendo o terceiro romance como parte de um doutorado. Ambos foram relativamente bem sucedidos - um teve um romance escolhido nos EUA como o “livro da semana” da Oprah. Ele foi traduzido para mais de 20 idiomas (seu último romance acaba de ser traduzido para o português!). O outro estudante obteve sucesso similar e a mesma aclamação crítica; ele também foi traduzido e agora tem um acordo de publicação para seu romance de doutorado. Mas essa garantia, embora substancial em comparação a qualquer outro acordo editorial acadêmico, não é grande o suficiente para sustentá-lo por muito tempo. Nenhum estudante poderia sobreviver exclusivamente de sua escrita. No entanto, ambos foram graduados bem sucedidos no curso de mestrado da UEA - eles estão perto do topo das possibilidades de realização dentro da área.

Os números acima sugerem que a maioria dos escritores, por definição, tem outras ocupações. Tais ocupações incluem ensino, jornalismo, tradução, legendagem, editoração, propagandas, trabalho nas indústrias criativas e toda uma variedade de outras posições a tempo parcial ou integral. Alguns departamentos universitários de Escrita Criativa (por exemplo, Bath Spa) planejam e ensinam com base nessa eventualidade. Eles pedem aos seus alunos para se envolverem em contatos externos

(em seu último ano de graduação) - com empresas, comércio, escolas, editores, publicações. Os alunos são obrigados a escrever planos de negócios, independentemente do seu empreendimento. Os projetos estudantis variam entre preparar aulas na comunidade e publicar numa revista local até organizar eventos internacionais. Alguns projetos não envolvem necessariamente a escrita. Outros podem levar a empreendimentos de negócios de longo prazo e/ou a emprego direto.

Mas esses aspectos do estudo de Escrita Criativa focados no mercado são relativamente raros. Em geral, para muitos, o curso de Escrita Criativa compreende um período único para se concentrar na escrita (e na leitura), o que não é possível durante a vida profissional - se o aluno progredir para algum nível de prática contínua. O empreendedorismo está presente tanto na inventividade da prática da escrita quanto nas inovações das possibilidades de trabalho, com alguns empreendimentos envolvidos, mas também na forma como os escritores pretendem continuar a escrever. Alguns formam pequenas editoras, por exemplo. Muitos fazem parte de oficinas de escrita em cursos e organizações formadas fora do ambiente oficial. Mas muito disso não é empreendedorismo em seu uso convencional.

 

 

REFERÊNCIAS - E ITENS QUE INSPIRARAM ESTA DISCUSSÃO

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Carter, R (2011) ‘Epilogue – Creativity: postscripts and prospects’ in Creativity in Language and Literature: The state of the Art eds. Swann, J, Pope, R and Carter, R. London: Palgrave Macmillan.

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Cusk, R (2013) ‘In praise of the creative writing course’ in The Guardian 18 January.

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